quinta-feira, 6 de março de 2014

Na Penúria, em Paris e em Londres, George Orwell

«Sete da manhã, na rue du Coq d’Or, Paris. Sobe da rua uma enfiada de gritos estridentes e furiosos. Madame Monce, a dona do pequeno hotel que fica precisamente diante do meu, desceu para o passeio, e daí dirige as suas imprecações contra uma locatária do terceiro andar. Tem os pés sem meias enfiados em socos e o cabelo grisalho desgrenhado.
Madame Monce: Salope! Salope! Quantas vezes te disse já para não esmagares os percevejos contra o papel da parede? Estás convencida que compraste o hotel, não? Não podes atirar os bichos pela janela como toda a gente? Putain! Salope!
A mulher do terceiro andar: Vieille vache!
Irrompe, entretanto, um coro discordante de uivos, e as janelas abrem-se de todos os lados, enquanto metade da rua se encontra já envolvida na zaragata. Mas tudo se cala de súbito, passados dez minutos, porque um esquadrão de cavalaria atravessa a rua e toda a gente fica a vê-lo passar.
Este breve apontamento destina-se apenas a transmitir ao leitor um pouco do espírito da rue du Coq d’Or. Não é que lá as zaragatas fosse o único acontecimento observável – mas é verdade que raramente se passava uma manhã sem a ocorrência de pelo menos uma crise como a que acabo de descrever. Brigas e os gritos desolados dos vendedores ambulantes, os berros das crianças dedicadas à apanha de cascas de laranja no chão, e, com a noite, cantigas entoadas a plenos pulmões, de mistura com o cheiro azedo dos caixotes do lixo – tal era a atmosfera peculiar da rua.»
(…)
Na penúria em Paris e em Londres, George Orwell (Ed. Antígona)

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